Os Amantes do Café Flore, de Ilan Duran Cohen

 

FICHA TÉCNICA

2006 / 104 min / França

Direção: Ilan Duran Cohen

Gênero: Drama, biografia

Elenco: Anna Mouglalis, Lorànt Deutsch, 

Robert Plagnol


O filme e cinebiografia Os amantes do café flore, dentro de seu propósito cinematográfico, aborda a vida, as filosofias e o romance de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Estes dois filósofos existencialistas, sem dúvida alguma, tornaram-se um dos casais mais influentes dos últimos tempos, na medida em que suas ideias e modo de vida foram causa de mudanças paradigmáticas que desestabilizaram - e questionam até hoje - padrões culturais, políticos, ideológicos, matrimoniais, monogâmicos, de gênero, etc.


O uso do termo “romance” para referir-se ao casal Beauvoir e Sartre não pressupõe uma referência às concepções do “amor romântico” de senso comum. Neste sentido, torna-se proveitoso destacar as ponderações de Cinthia Lima (2018, p. 102) ao afirmar que a relação de Beauvoir e Sartre poderia ser uma história de “amor romântico” entre dois jovens estudantes de filosofia, todavia, a relação dos dois foi mais impulsionada por ideias, companheirismo e afinidade intelectual (que durou até a morte de Sartre) do que por um romantismo idealista distante das causas que Simone viria justificar em sua filosofia (teórica e prática) voltada para a conquista da liberdade feminina.


A filosofia de Beauvoir carrega fortes influências da filosofia sartreana, isto é, as ideias acerca do existencialismo, liberdade e história, afirma Cinthia Lima (2018, p. 103), tiveram um papel de grande relevância nas formulações das principais teses feministas da filósofa. A partir da tese sartreana de que “a existência precede a essência”, o filósofo posiciona-se contra as tradições deterministas que, por sua vez, eram alicerces de filosofias da "natureza humana”, nas quais preservava-se vieses deterministas de cunho ontológico, epistemológico, teológico, entre outros. Diante destes pontos teóricos existencialistas, Beauvoir questionará certos juízos sobre a “natureza feminina” e, concomitante a isto, propondo uma visão crítica acerca da condição feminina, visão esta que ocupará o cerne de sua principal obra, O segundo sexo (1949), na qual elaborou sua principal defesa da liberdade feminina.


O filme exibe com riqueza de detalhes a diligência de Beauvoir diante da realidade machista da época, assim como as justificações de tal realidade no próprio seio familiar sob a máxima machista de seu pai e repetida por sua mãe ao afirmarem que “uma mulher é o que o marido faz dela”. Durante toda sua vida, Simone lutou contra esse tipo de mentalidade que instrumentaliza o ser feminino em prol dos interesses masculinos, de modo que destaca-se em seu pensamento “a divisão entre homens e mulheres das tarefas domésticas, na educação dos filhos; e a renúncia da autoridade do homem sobre a mulher” (LIMA, 2018, p. 106); notabiliza-se também pontos referentes à liberdade feminina enquanto direito ao trabalho, independência econômica, qualificações educacionais, opção livre à maternidade, etc.


Nota-se pelo desenrolar do enredo que a filósofa Beauvoir ocupa o centro da narrativa cinematográfica, ou seja, o seu parceiro Sartre aparece quase sempre em segundo plano, a partir de tópicos biográficos sobre a vida da filósofa e em ocasião de um destaque especial para a relação dos dois. Além do enfoque na relação do “casal filósofo”, o filme explora com afinco a condição da mulher de um contexto histórico em que seu papel social resumia-se quase sempre ao “ofício” da procriação e realização de trabalhos domésticos.


É a partir desta conjectura que o filme Os amantes do café flore aborda de forma resumida a amizade de Beauvoir e Elisabeth (Zaza), dando um foco maior para a morte prematura e misteriosa desta, enquanto aquela foi profundamente marcada pela morte da amiga, fato que impactou sua trajetória enquanto mulher e filósofa defensora da liberdade feminina. A influência que a perda da amiga exerceu sobre a vida de Beauvoir constitui um fato indisfarçável, afinal, Elisabeth (Zaza) aparece nas reflexões de Memórias de uma moça bem-comportada (1958) e, recentemente, destaca-se na obra As inseparáveis, escrita em 1954, mas publicada postumamente apenas em 2020, na França, pela filha adotiva da filósofa, Sylvie Le Bon de Beauvoir.


De fato, a morte de Elisabeth Lecoin (Zaza) consiste em um acontecimento envolto por mistérios e perguntas sem respostas que, como afirma Annabelle Bonnet (2020, p. 375), suscita destinos divergentes a duas mulheres “da mesma idade, do mesmo meio e com uma igual vontade de viver e ser livres”, mas que enquanto uma “rompe progressivamente com o seu meio social de origem, ganha independência financeira e se realiza na filosofia”, a outra “se encontra cada vez mais presa ao universo social e familiar da elite francesa, penetrado pelos pensamentos irracionalistas e autoritários dos anos 1920, e dentro do qual as mulheres não são sujeitos de direito”.


Em suma, o telespectador depara-se com um quadro de situações que desarticula polarizações e estimula o debate crítico acerca do existencialismo, feminismo e seus principais intelectuais.


Portanto, conclui-se que Os amantes do café flore revela ser uma ótima referência tanto para que entenda-se a vida dos filósofos Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre, assim como pontos centrais do existencialismo e do feminismo, e isto, a partir do contexto histórico da época em questão. A obra ajuda, também, a mostrar que o feminismo nasceu de uma realidade extremamente machista e de opressão da mulher, solicitando, antes de qualquer coisa, “que o homem exerça um olhar sobre a mulher, colocando-se no lugar dela, percebendo-a como sujeito tanto quanto ele é” (LIMA, 2018, p. 107).


REFERÊNCIAS


BONNET, Annabelle. Simone de Beauvoir, de Zaza ao feminismo. Uberlândia, MG: Caderno Espaço Feminino, v. 33, n. 2, p. 374-380, 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 12 de mai. 2021.


LIMA, Cinthia Almeida. A visão de Simone de Beauvoir sobre a condição feminina. Diaphonía, v. 4, nº. 2, p. 102-109, 2018. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 12 de mai. 2021.


Comentários

  1. Resenha muito bem escrita e fundamentada! Não conhecia o site e as redes de vocês, mas vou acompanhar a partir de agora. Obrigada!

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  2. Ah, como não consegui adicionar o meu nome ao comentário, aqui vai: Laura Fortes

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