Death Note, de Tetsurõ Araki


FICHA TÉCNICA

2006 / 37 episódios / Japão

Gênero: Drama, thriller

Direção: Tetsurō Araki

Personagens: Light Yagami (ou Kira), L, Ryuk, Misa Amane

Estúdio: Madhouse


O anime Death Note gira em torno de Light Yagami, um jovem estudante popular, sagaz, idealista e, de certa forma, um fascista niilista[1] que decide agir como justiceiro sob o codinome Kira, punindo todos que são reprovados pelo seus critérios de justiça, melhor dizendo, “Light se convence de que o mundo está podre e precisa ser purificado, cabendo a ele este papel” (BASTOS; OLIVEIRA, 2016, p. 42). 


Ao deparar-se com o caderno da morte do shinigami Ryuk, Light Yagami incrementa seu lado narcisista sob o pretexto idealista de mudar o mundo, idealizando-o segundo seu julgamento de certo e errado, justo e injusto, assim como visando tornar-se “o arauto do novo mundo, pois somente ele seria capaz de purificar o mundo, dedicando a esse propósito seu corpo, mente e alma” (BARBOSA; BRAGA; SILVA, 2018, p. 06). A noção de justiça é demasiadamente distorcida, pois “o personagem idealiza a necessidade de um herói, que livre a sociedade de seres malignos, evocando assim um pensamento puramente maniqueísta” (BASTOS et al., 2016, p. 43).


Com isso, de forma metódica e denominando-se arauto da “Justiça” e “Deus” do novo mundo, inicia seu plano de eliminar os inimigos da “ordem e da justiça”, classificando-os, cartesianamente[2], como a doença da sociedade e, neste processo, passa a valorizar patologicamente a si mesmo, de modo a denominar-se o escolhido para a missão de expurgar a criminalidade, injustiça e corrupção da mesma, ou seja, apresenta-se como a cura do mundo e aqueles que o contraria, categoricamente, são considerados partes da doença. 


Além da justiça como temática central presente no embate entre os personagens L e Kira, nota-se outros pontos teóricos procedentes da mentalidade fascista presente na visão utópica de sociedade deste, assim como nas condições de punição que o mesmo adota, evidenciando o narcisismo e infantilização da consciência enquanto projeção de si mesmo sobre o mundo ao visar tornar-se o fundamento valorativo do mesmo, assim sendo, não há uma busca por justiça, mas um comportamento autoritário alinhado à “imposição de ideias sem permitir que a voz dos outros participe da construção constante da sociedade” (BARBOSA et al., 2018, p. 07).


Os dois personagens, Ryuk e Yagami, apresentam características melancólicas e procuram desafios para fugir do tédio. À vista disso, constata-se que as ações de Yagami não são impulsionadas pelo desejo de mudar a sociedade, mas pela fuga do tédio e vontade narcísica em querer provar ser excepcional, ou melhor, os ideais propostos por Kira são pretextos que voltam-se para a “obtenção e manutenção do poder” (BARBOSA et al., 2018, p. 07). Neste cenário surge o agente L que, na visão do Yagami, é um adversário apropriado para provar a si mesmo, de forma definitiva, ser alguém superior, capaz de impor sua “Justiça” a todos e, deste modo, vencer o único que é capaz de enfrentá-lo.


E assim dá-se início ao duelo intelectual entre Kira e L, um duelo similar a um estratégico e agressivo jogo de xadrez, no qual táticas e raciocínios lógicos compõem uma ópera de movimentos em que as mentes brilhantes dos jogadores manipulam “as pessoas ao seu redor para que seus planos ocorram do modo planejado” (BARBOSA et al., 2018, p. 07). Todavia, enquanto L preserva certos princípios éticos e humanitários, Kira entrega-se aos delírios da “justiça” e manutenção do poder a qualquer custo, uma utopia de justiça que nivela e massacra tudo que é individual e contrário a suas leis subjetivas. 


O mesmo vale para a instrumentalização do outro, pois L, até certo ponto, respeita a dignidade e individualidade das pessoas ao seu redor, não obstante, Kira usa as pessoas “como extensão de seu poder” (BARBOSA et al., 2018, p. 08), conduta evidenciada na sua relação com Misa Amane, uma jovem que tem outro caderno da morte e apaixona-se por Light Yagami, mas é usada por este de forma vil e cruel. Diante disso, nota-se uma certa banalização do mal[3], isto é, Kira instrumentaliza e burocratiza o assassinato por meio do caderno da morte e sob a falácia de “melhorar a humanidade”.


De acordo com BARBOSA et al. (2018, p. 10), com a intrumentalização e burocratização (ou banalização do mal) normatiza-se “a prática da crueldade, do assassinato, do genocídio, da tortura”, etc., pondo tais práticas como “parte das regras, dentro das leis, e portanto práticas as quais seus executores, uma vez entendidos dentro da lei [...], eles próprios” entendem “a si mesmos como pessoas de bem, ou no mínimo como cumpridores do dever, pessoas eficientes, jamais como criminosos”, nesse sentido, os personagens Amane e Mikami são exemplos de cumpridores do dever instrumentalizado e irrefletido, mesmo que tal dever signifique a morte daqueles que opõem-se ao autoritarismo. 


Assim sendo, ao analisar a obra como um todo é “revelado que o estudante apenas [...] estava entediado: não há uma motivação verdadeiramente nobre ou moral” (BASTOS et al., 2016, p. 44), e pior, suas verdadeiras intenções são mascaradas por uma mentalidade fascista, uma mentalidade que não faz distinção entre sujeito e objeto, contudo, torna-se urgente ressaltar que a diferença entre a justiça de L e Kira “reside no fato de que um pretende agir de forma isolada e realizar a sua própria justiça ao matar quem ele mesmo julgar inconveniente; o outro, por sua vez, pretende agir dentro dos parâmetros legais, tirando uma vida a partir de uma licença institucional” (BASTOS et al., 2016, p. 45), assim, o anime chega às delicadas questões jurídicas referentes à pena de morte, desde que seja sob o aval do Estado.


Por conseguinte, conclui-se afirmando que Death Note é um anime filosófico de suma relevância, pois o mesmo não restringe-se a um único personagem para discutir a justiça, o fascismo, bem como a banalidade do mal, entre tantos outros temas; diversamente, todos os personagens da obra evidenciam algo relevante para que compreenda-se os embates em torno desses temas, assim como em torno da manipulação dos mesmos perante os jogos de conquista e manutenção do poder.


NOTAS


[1]. O niilismo, tanto na filosofia como na literatura russa do séc. XIX, refere-se ao estado de consciência no qual os valores, as tradições e as crenças são desprovidas de sentido e utilidade para a existência, ou seja, o indivíduo inclina-se para o nada e para o aniquilamento valorativo dos sentidos. Com isso, constata-se traços niilistas em Light Yagami, na medida em que o mesmo é desprovido de valores e os valores postulados pelo mesmo, não passam de um fascismo que justifica a própria maldade para a justificação do aniquilamento do mundo e das pessoas que nele habitam, condenando-os e desejando corrigi-los, pois para este niilista, o mundo é desprovido de valores que mereçam credibilidade.


[2]. Kira usa os termos eliminar, elucidando seu raciocínio cartesiano extremista e dedutivo, assim como um maniqueísmo fruto de sua mentalidade fascista.


[3]. A banalidade do mal, segundo Hannah Arendt, caracteriza-se pela negligência do caráter humano, sendo fortemente alicerçada pela ausência de reflexão em relação ao cumprimento dos deveres e leis, assim sendo, desvia-se da consciência provida de responsabilidades pelas ações individuais, focando apenas nas leis e regras institucionalizadas, consequência da instrumentalização e burocratização da dominação por intermédio do autoritarismo, fascismo e tirania. No anime, nota-se certos indivíduos que cooperam com a execução da justiça imposta por Kira, os mesmos cumprem seus deveres previamente estabelecidos pelo tirano, sem considerar as consequências de suas ações, afinal, os mesmos estão cegos pela banalização do mal institucionalizada e burocratizada pelo poder autoritário do Kira ao dominar plenamente as leis e o Estado.


REFERÊNCIAS


BARBOZA, Cléberton; BRAGA JR, José; DA SILVA, Alana. Eu sou a justiça: a mentalidade fascista em Death Note. Anais do V ENHS - Encontro Nacional de História do Sertão - A Interdisciplinaridade na História: diálogos entre política, economia, sociedade e cultura, 04-07 de dez. 2018. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 02 de abr. 2021.


BASTOS, Rodolpho; OLIVEIRA, Amanda. A justiça de Kira: representações da justiça no anime Death Note a partir da teoria da audiovisão. Palíndromo, v. 08, nº. 16, p. 35-50, 2016. Disponível em:  clique aqui. Acesso em: 02 de abr. 2021. 


Comentários