O Poço, de Galder Gaztelu-Urrutia


FICHA TÉCNICA

2019 / 94 min / Thriller / Ficção científica

Direção: Galder Gaztelu-Urrutia

Elenco: Zorion Eguileor, Ivan Massagué, 

Antonia San Juan

Nacionalidade: Espanha


O filme O poço expõe uma realidade alegórica na qual a abrangência crítica é de difícil mensuração. O enredo é elaborado a partir de uma instituição penal formada por níveis e em cada nível tem duas pessoas que são alimentadas por uma plataforma que desce com comida, proporcionando o privilégio da abundância às pessoas que estão nos níveis superiores e ocasionando a má distribuição de suprimentos à medida que a mesa desce: as celas inferiores recebem pouco ou nada.


É a partir desta configuração distópica que, de maneira sádica, a obra define as pessoas em três tipos: as de cima, as de baixo e as que caem. O público vê-se tentado a fazer correlações com aspectos da sociedade contemporânea e os modelos socioeconômicos atuais de sociedades divididas em classes, repletas de burocracias administrativas incapazes de lidar com o individualismo, a pobreza e a sobrevivência. A metáfora questiona as classes sociais e sua administração, expondo o egoísmo dos de cima que não se preocupam com os de baixo, assim como o egoísmo daqueles que um dia estiveram abaixo e, quando sobem, adotam os mesmos padrões comportamentais individualistas, ou seja, existe uma certa mobilidade no sistema e isto permite que os opressores tornem-se oprimidos pelos que encontravam-se em celas inferiores.


Em síntese, o sofrimento, a fome e o desespero pouco ou nada ensina aos apenados. Há alimento suficiente para todos, mas o egoísmo destrói a possibilidade de uma distribuição eficiente sob o pretexto de ser um Centro Vertical de Autogestão cuja a administração do sistema, “a partir de uma estratificação social”, afirma que “cada indivíduo teria autonomia suficiente para gerenciar o recurso que chegava para si, de modo a alcançar uma solidariedade espontânea” (DA SILVA, p. 01, 2020).


O planejamento burocrático rigoroso encobre os resultados desastrosos provenientes da ausência de uma gestão competente, pois há apenas o cumprimento de regras protocolares e não importa se “as pessoas deixam o individualismo prevalecer em meio a todos os sentimentos emergentes nesse contexto” (DA SILVA, p. 03, 2020). O modelo é pensado fora da realidade, baseado em falsas premissas e, em decorrência disto, os afetados pelo planejamento não têm acesso aos administradores que planejam tudo para um todo que, em suma, é soterrado pelos interesses dos poucos de cima que gozam plenamente dos privilégios.


A administração do Centro Vertical de Autogestão prepara os suprimentos com um ritual milimetricamente supervisionado, mas ignora os eventuais problemas referentes à distribuição, deixando os integrantes do centro à deriva. São rituais similares aos adotados pelos “órgãos de poder que delegam as responsabilidades de bem-estar aos indivíduos, reduzindo cada vez mais a incumbência do Estado, que fecha os olhos para as desigualdades sociais, atribuindo à meritocracia as visíveis diferenças de oportunidades” (MACHUCA, p. 193, 2020).


Desse modo, evidencia-se questões político-econômicas que evocam grandes debates sobre os limites da atuação do Estado na sociedade, bem como sobre as instituições privadas e estatais, ou ainda, sobre as liberdades individuais, etc. Problemas econômicos e políticos que ocupam o centro das discussões em teorias como o liberalismo, neoliberalismo, socialismo, comunismo, entre outras. Obviamente, a metáfora presente no filme sobre a intenção de “despertar nas pessoas a solidariedade espontânea”, é colocada em xeque, “pois os prisioneiros não conseguiam ser empáticos com os que passavam fome mesmo já tendo ocupado tal lugar” (DA SILVA, p. 04, 2020).


E abre-se a ferida da culpa que, segundo Jaqueline Machuca (p. 194, 2020), talvez seja o ponto chave para a mensagem da obra, visto que diante da questão “a culpa é do sistema?” ecoada pela sina dos personagens e no imaginário do telespectador, é possível observar pelas entrelinhas da condição humana uma angústia ricocheteando que “não há respostas, pois não existem culpados, embora todos o sejam”.


A trama submete personagens e telespectadores -– de forma catártica? — a situações limite para discutir a condição humana. Os dois personagens principais chocam-se do início ao fim numa colisão de mundos que é impulsionada pelo forte atrito entre a visão idealista e a visão naturalista. A palavra-ordem do personagem naturalista é “óbvio”, porque, para o prisioneiro mais velho, tudo está inserido em regras claras, naturais e que exigem adaptação para sobreviver. O idealista é inconformado com tudo e luta contra o próprio egoísmo, contra o individualismo que encontra-se arraigado pela banalização do mal que é estimulada pelas nefastas políticas administrativas.


É possível notar a natureza humana sob uma ótica hobbesiana e em momentos isolados há uma luz rousseauniana: o homem é o lobo do homem, sua natureza é má e egoísta durante quase todo o desenvolvimento, mas há a desafiadora missão de encontrar esperança, talvez uma mensagem rousseauniana, pois o homem é bom em estado de natureza e a única criança presente no enredo aponta para o bom selvagem enquanto sinônimo de esperança e redenção da humanidade.


Posto isto, finaliza-se ressaltando que o longa-metragem O poço causa impactantes meditações por meio de seus horizontes teóricos e proposições narrativas, evidenciando a convicção de que “não se trata de uma obra unânime”, pois “as pessoas tiveram diversas reações nos comentários a seu respeito, o que mostra a sua riqueza artística” (CASAGRANDE, p. 1311, 2020).


REFERÊNCIAS


CASAGRANDE, Ana Lara. "O poço": a sociedade vertical compartimentalizada e a escola. Revista Prática Docente, v. 05, n. 02, p. 1298-1313, 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 02 de jan. 2022.


DA SILVA, Edlaine S. Barros. Uma breve análise sobre a correlação entre o filme “O poço” e o modelo socioeconômico contemporâneo. Revista Direito no Cinema, v. 2. n. 1, p. 17-22, 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 17 de jan. 2022.


MACHUCA, J. Cstilho. O poço, de Galder Gaztelu-Urrutia: a distopia de um panóptico contemporâneo. Cinema & Território, n. 05, p. 191-194, 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 16 de dez. 2021.


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