O Que é Música?

Obra "Orfeu" (1894), de Károly Ferenczy.


Estou com medo de que as pessoas me chamem de chato. Pois eu acredito que a música é uma das quatro ciências matemáticas por excelência[1]. Acontece que eu não conheço quase nenhuma pessoa que concorde com isto. Se elas já tivessem ouvido as lições do filósofo Pitágoras (570–495 a.C.)[2], me chamariam de porta voz de Orfeu[3]. Pois, como muitos sabem, mas poucos tem coragem de dizer, toda música deveria expressar a beleza e a força da alma humana: a primeira, formada por fundamentos e princípios, que solicita a teoria musical, e a segunda, formada pelos afetos, que solicita o sentimento, e que deve submeter o seu conteúdo e sua subjetividade aos sons, se desejar ser luz que ilumina a alma.  

 

Basta observar os ouvidos concentrados das pessoas e as suas expressões repletas de encanto para compreender que a música lhes traz iluminação. A minha hipótese é que, se se fizer uma pesquisa entre adolescentes e jovens sobre suas experiências de audição na música, eles terão muito que falar sobre a folia e a dança entre eles, mas pouquíssimas serão as referências à beleza da melodia, harmonia e ritmo. 


Acontece que os mais jovens não estão sozinhos neste julgamento. Eu mesmo só me lembro com entusiasmo de dois gêneros do meu tempo de infância, adolescência e pós-adolescência. O primeiro, um caboclo de viola caipira, músicos do sertanejo raiz, tratavam-nos todos como sertanejos. O outro, um rebelde de guitarra, foi o primeiro gênero a me introduzir nas aventuras da melodia. Ele falava sobre as grandes revoltas com tais solos que deles nunca pude esquecer. Quanto aos outros, a minha sensação era a de que nos consideravam consumidores a serem confundidos e alienados por um gosto cujas finalidade e superficialidade nunca se deram ao trabalho de nos elevar. Compreende-se, portanto, que entre nossas maiores referências achava-se a revelação de que o público estava alienado e não saberia reeducar o gosto. E até mesmo uma promiscuidade de obscenidade ou um aviltamento era motivo de divertimento, quando a alienação nos dava uma desculpa aceitável para o emburrecimento da música. 


Não me espanto, portanto, que tenha conhecido tão pouca música clássica na sociedade. O que escutei foi afastado dela e questionando ela. Diogo Pacheco[4] comentou algo interessante. Afirmou que existe uma crença generalizada de que para se gostar de música clássica é preciso entender do assunto e defende que basta ter sensibilidade para ouvir música clássica. Era, de fato, corriqueiro ouvir essas afirmações fundamentadas por preconceitos e enganos que não queriam ser refutados. 


Este cenário, ao que aparenta, tem sido a norma, tanto que e assim aparece repetidamente consagrada na indústria. Diogo Pacheco (2011, p. 23-24) conta a experiência de um programa: “No meu programa, por exemplo, recebo grande quantidade de cartas pedindo para tocar ‘a música do desodorante’, que é, nada mais nada menos, que as ‘Quatro estações’, de Vivaldi, usada como fundo musical de um anúncio de desodorante. Ou ‘a música do 2001’, que é o ‘Assim Falou Zaratustra’, de Richard Strauss”. Mas nem precisamos ler Diogo Pacheco: bastaria observar os equívocos que os nossos virtuoses têm de escutar e refutar. Concordo com Diogo Pacheco na sua afirmação de que não há incentivo nem publicidade para músicas que não estejam dentro das promessas de lucro imediato. Daí compreende-se que o brasileiro não escuta o que realmente deseja ouvir, mas apenas aquilo que a indústria manda. 


As músicas ouvidas no cenário atual como o sertanejo e o forró, exemplificando, já foram melhores. Mas poderá haver aflição maior para um jovem ou um adulto que ser forçado a enquadrar-se numa indústria de músicas que ele não consegue assimilar, e que nenhuma relação parecem ter com a sua sensibilidade? Ora, ao considerarmos os ensinamentos de Hannah Arendt[5], constatamos que existem dois tipos de cultura: a cultura de massa e a cultura como fenômeno do belo.


Enquanto a cultura como fenômeno do belo apresenta-se de maneira mais abrangente, sobrevivendo durante séculos sem perder seu valor de beleza, a cultura de massa se modifica constantemente como produto contemporâneo e é condicionada pelos meios de produção da atual sociedade. Infelizmente, até a cultura como fenômeno do belo é afetada por esta crise, uma vez que quando é divulgada para um fim específico, desvirtua-se de seu objetivo principal que seria a apreciação do belo, tornando-se uma mercadoria a serviço do “falso culto” que suplanta a essência da cultura.


Compreende-se que, com o passar do tempo, a sensibilidade se endureça por desconhecimento e comodismo diante dos espetáculos estrondosos, e que o ouvinte passe a se considerar como um inculto. Quando a realidade é outra: a sua escuta foi desvirtuada pelos baderneiros e, por isso, ficou alienada. 


Os produtores de música desenvolveram métodos para condicionar o público e, a partir dos seus resultados, classificam os ouvintes. Mas ninguém jamais pensou em desenvolver a sensibilidade dos ouvintes — mesmo porque não há lucros objetivos para tal. Porque a sensibilidade é uma condição interior, uma experiência de abstrações e de subjetividades e sentimentos. Os músicos atuais, influenciados pelo alvoroço do mundo, esquecem-se de que a obrigação essencial da música é tocar o íntimo particular que jaz adormecido em cada indivíduo. Daí a angústia com que sempre nos defrontamos: quanto maior a espetacularização, menor a sensibilização. Arthur Schopenhauer fazia esta provocativa afirmação, que deveria ser fonte de meditação para todos os músicos: “A música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende”.


Vai aqui esta advertência aos apressados, advertência de alguém que sofre ao ver o música desvinculada dos seus princípios, dos seus valores: lembrem-se de que definir a música não é uma coisa tão simples e óbvia quanto parece à primeira vista, visto que ela preserva um caráter de abstração que excede qualquer definição fechada ou absoluta e a nossa experiência com ela é de difícil formalização e cuja compreensão se apresenta na esfera do intuitivo e do sensível.


NOTAS


[1]. O filósofo e cientista pitagórico Arquitas de Tarento (428-347 a.C.) afirmava que a música, assim como a aritmética, geometria e a astronomia, é uma das quatro ciências matemáticas por excelência.


[2]. O filósofo Pitágoras (570–495 a.C.) defendia que a música tinha várias finalidades, inclusive pedagógicas: a purificação da mente, a cura de doenças, o domínio da raiva e da agressividade do homem, dentre outras coisas.


[3]. Segundo o mito de Orfeu, quando ele tocava sua lira, a própria natureza curvava-se: as árvores, os pássaros e os animais selvagens paravam para escutar a sua lira.


[4]. PACHECO, Diogo. Não é preciso entender: basta gostar. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 2011. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 17 de jul. 2021.


[5]. ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.


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