Sobre o Xadrez

Marcel Duchamp en passant Mark Kostabi - Swindle of the
Century (2002), de Mark Kostabi.


Um jogador se refere ao xadrez como “jogo”. Um intelectual o chama de “ciência”. Um profissional fala dele como “esporte”. Há os que dizem: “suas composições”. Outros o chamam de “arte”. Para alguns, é "a ginástica da inteligência”.


Estão equivocados? Tecnicamente, não – é um pouco de cada –, mas… Idel Becker (2002, p. 09)[1] cogitando diante do problema aberto, escreveu que o xadrez é o jogo-arte-ciência em virtude de solicitar "habilidade (jogo),  imaginação (arte) e cálculo (ciência)”.


A questão é que no xadrez pouco importa ter sorte – diferente do que alguns pensam – e muitos afirmam que o número de jogadas possíveis no xadrez é muito maior e excede o número de átomos do universo, como atesta o número de Shannon segundo o qual os simples dez primeiros movimentos de uma partida podem ser feitos de 170 setilhões (1,7 × 1023) formas diferentes. Até mesmo as pessoas que não jogam xadrez, indiferentes à contingência do mesmo, dão a ele elogios, valor e respeito. Mas vem cá: é jogo ou é esporte? Se o objetivo do enxadrista é jogar em campeonatos e conquistar títulos…


Há jogos que são variantes do xadrez como o Janggi, criado na Coreia; outro é o Xiangqi, proveniente da China; outro é o Makruk, oriundo da Tailândia; e o magnífico Shogi, natural do Japão; outras variantes são pessoais, como o Xadrez Capablanca e o Xadrez Bobby Fischer (Xadrez960); ou as variantes tridimensionais e bidimensionais, como em tantos. O xadrez possui a beleza das táticas e das estratégias que o futebol desfruta – e complexidades que o melhor futebol não se permite.


Está em cena na cultura brasileira, do século XIX para cá. O escritor Machado de Assis observa: “Das qualidades necessárias ao jogo de xadrez, duas essenciais: vista pronta e paciência beneditina, qualidades preciosas na vida que também é um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras perdidas, outras nulas”.


Simón Bolívar, um militar, destacou essa correlação entre xadrez, educação e vida: “O xadrez é um jogo útil e honesto, indispensável na educação da juventude”. Veio, pois, de um modelo de jogo primitivo comum na Índia do século VI, distinto, incipiente, com outras regras e, no entanto, apolíneo[2].


Por que deu poucos frutos no Brasil? Mistérios da identidade nacional. Talvez por ser o jogo-arte-ciência e o país, samba-sexo-futebol[3].


O xadrez pode ser agressivo ou posicional, um diagnóstico psicológico. Como se fosse pensado para inúmeras sagacidades, como se só com elas o jogador pudesse se instigar tanto. Movimentos sobre o tabuleiro, refutações: nós raciocinamos isto, não é, jogador?, testamos isto, não é?, questionamos isto, não é? O jogador de xadrez procura lances lógicos.


Se é tão antigo e consagrado, por que bastante gente não aprendeu a jogá-lo pelo óbvio? É que ele tem muitos desafios. Recorro a Edward Lasker, mestre do estilo antigo. Ele orienta que o xadrez “deve limitar o elemento sorte e acentuar a importância do planejamento e, como a vida, ensinar a coordenação entre razão e instinto".


O xadrez muda, tudo muda. Como o próprio jogo que ele suscita com peças atentas. Não é preciso confrontar capacidades, botar Magnus Carlsen diante de Garry Kasparov ou Bobby Fischer. É mais certeiro apreciá-lo desenvolvendo-se na virtuosidade, como destaca Raúl Capablanca[4]: “O xadrez é, na ordem intelectual, o que o esporte é na ordem material: um meio agradável de exercitar a parte do corpo humano que se deseja desenvolver”. E ele finaliza: “Ademais, do ponto de vista social, os iniciados têm para o resto de sua vida uma diversão útil para passar agradavelmente muitas horas durante todo o transcurso de sua vida”.


Elementos que não funcionam no xadrez: indisciplina, desatenção, sorte, arrogância, redundância, preguiça. Elementos que funcionam: estudo, disciplina, concentração, raciocínio, imaginação, criatividade, inteligência, abstração, autocontrole, decisão, planejamento tático e estratégico, etc.


Ao fim e ao cabo, não são muitos os que compreendem o quanto o xadrez é difícil e próprio da razão teórica. A lógica do xadrez não se revela na ação do movimento das pedras, pois sua disciplina convencional e abstrata, pontua Frits van Seters[5], “exige o aprendizado de uma técnica, a aquisição de determinadas ideias de combinação e estratégia, e um espírito voltado para a lógica, capaz de deduções e induções”.


NOTAS


[1]. BECKER, Idel. Manual de Xadrez. São Paulo: Nobel, 2002.


[2]. O apolíneo é um conceito filosófico que faz alusão a Apolo, deus do Sol, da razão e das artes.


[3]. BENDER, D.; SARAIVA, J. A. Futebol, samba e sexo: afinal, é isso o Brasil?. Revista Prâksis, v. 02, p. 55-66, 2012. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 21 de jan. 2022.


[4]. CAPABLANCA, J. Raúl. Lições elementares de xadrez. Trad. João Amendola. São Paulo: Hemus Editora Ltda.


SETERS, van Frits. Manual prático de xadrez. Trad. Luiz Carlos Teixeira de Freitas. Hemus – Livraria Editora Ltda.


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