A Beleza Obrigatória

Arte de Titus Kaphar. 


O ser humano é a única criatura que deseja ser o que não é. Uma pedra há de ser uma pedra para sempre, da mesma maneira que uma serpente há de preservar, até o fim, a sua determinada natureza. E assim o ciclo natural das coisas se processa e como tal floresce e envelhece. Nunca soube de um animal que quisesse ser outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, falsificar-se e desnaturalizar-se. Ele se nega e, ao mesmo tempo, nega a natureza e o mundo.


Não sei se me expresso de maneira clara. Mas vamos lá. Por exemplo: o corpo. Para nós, o corpo não é uma verdade, mas uma contingência. Ninguém aceita o corpo como uma verdade. O que importa é a nossa vontade imposta pelo ideal — e não é uma idealização à moda platônica, é segundo o algoritmo cibercultural. Focamos lá e falsificamos a probidade do real e da beleza (e, realmente, negamos a beleza natural).  


E nem precisamos explorar outros assuntos. Aqui mesmo, nos limites da beleza, criamos as nossas principais negações. Temos o padrão, uma beleza que não é beleza, mas uma simples deturpação. Sua inverdade não nos incomoda, nem a sua incongruência. Fixa-se lá por motivos fictícios, coletivos, e não individuais, vejam bem, não individuais. Pelo padrão vive-se com infelicidade e deseja-se com superficialidade. Mas fazemos o que todos fazem, e basta. 


Adotar certos padrões é uma maneira de ser aceito ou estimado sem fazer uma ação real e sem arriscar uma proeza significativa. Do mesmo modo, o personagem pseudo-politizado (que pelo simples fato de ter uma ideologia) toma uns ares de onisciência e de transcendência. Mas já escrevi aqui sobre a hipocrisia. E, assim, falsários da beleza, das imperfeições da vida, vamos fazendo nossas escolhas virtuosas, ideológicas, políticas, literárias, religiosas etc. etc.  


(Outro dia peguei uma revista e olhei lá um artigo, de uma psicóloga. Ela falava sobre os padrões irreais e destacava que “o uso das mídias sociais abala a autoestima de seus usuários de todas as idades, mas as mulheres são as mais afetadas” (CASTELÃO, 2021, p. 40)[1]. A psicóloga ainda ressaltou que “as mídias sociais valorizam apenas o que é bonito e bacana, mas que geralmente corresponde a situações idealizadas”. Notei que algumas poucas pessoas estão assustadas com a obscenidade ululante nas mídias.)


Fiz a citação acima, mas preciso ressaltar: não estou dizendo, em absoluto, que a nossa tecnologia inventou os falsos padrões das mídias ou do século. Cada espaço tem os seus, e repito: cada ambiente apresenta seus padrões de afirmação, negação, idealização ou falsificação. Por exemplo: o belo. Era definido dentro e fora da estética, segundo Nicola Abbagnano (2007, p. 106-107)[2], a partir de cinco conceitos fundamentais: 1ª) o belo como manifestação do bem na teoria platônica; 2ª) o belo como manifestação do verdadeiro no Romantismo; 3ª) o belo como simetria em Aristóteles; 4ª) o belo como perfeição sensível, responsável pelo nascimento da Estética; 5ª) o belo como perfeição expressiva (todas expressavam algo de sublime. Até os “padrões” da época eram de uma profundidade invejável). 


Nas concepções do passado ainda se respeitava a verdadeira beleza. Em qualquer definição, nas artes, nas filosofias, nas religiões, nos padrões, o belo tinha uma dimensão sublime. Quando expressavam a beleza, todos se encantavam. Ah, não, não era como a objetificação de agora. Outro dia vou eu no computador ler um livro de filosofia da arte. Páro a obra no tópico que fala sobre o belo, o sublime e destaca que “o belo é o objeto de uma satisfação desinteressada” (LACOSTE, 1986, p. 17)[3]. Vejam bem: “a beleza do objeto é, de maneira definitiva, distinta do que pode ter de agradável a fruição e o consumo de um objeto” (LACOSTE, 1986, p. 18).


E pior: se nas concepções passadas havia uma dimensão sublime, desinteressada, agora, o belo foi reduzido à objetificação do corpo, que foi reduzido ao consumo. Tal descaro seria inviável em Platão, Aristóteles ou mesmo no Romantismo. Naquela época, fazia-se reverência à beleza como a um ente sagrado. Hoje, não temos nem a reverência, nem o encanto (tudo é reduzido ao desejo consumista). 


Volto à questão do consumo. Em verdade, as habilidades são irrelevantes, basta tornar-se celebridade para ser considerado belo e “manipular sua identidade social virtual, para assim aumentar suas chances de aceitação social” (SAMPAIO; FERREIRA, 2009, p. 122)[4]. Então, o corpo na sociedade atual sujeitou-se a um padrão obrigatório de beleza que atinge o “status de objeto de consumo” (SAMPAIO; FERREIRA, 2009, p. 125). As ilusões do padrão obrigatório, não aceitam a existência de celulites, estrias, “qualquer mancha ou espinha na pele (por menores que sejam), e de qualquer característica que denote idade, como rugas, vincos no rosto, marcas de expressão e flacidez” (SAMPAIO; FERREIRA, 2009, p. 123).


O corpo deve ser perfeito, menos real. Ou ainda, finalizando com Rodrigo Sampaio e Ricardo Ferreira (2009, p. 123), a beleza obrigatória “equivaleria à menor porcentagem de gordura corporal possível, nádegas e seios grandes e empinados, músculos definidos, pele bronzeada, lábios grossos”. Não significa, felizmente, que a busca por um padrão de beleza em si seja algo ruim, mas apenas constata-se que quando tal busca é desvinculada do desejo individual e motivada por uma pressão coletiva, nota-se a presença de comparações que resultam na adesão de padrões apenas para ser aceito e reconhecido.


E de fato a “beleza obrigatória” abriu as portas para a instauração de uma vida pautada na negação de si e culto à aparência. Somos obrigados a reconhecer que o corpo virou fetiche e a beleza uma comparação, uma obrigação. Passamos a perceber que os padrões irreais influenciaram as pessoas a passarem a vida inteira simulando perfeição, assim como as celebridades ao fazerem o marketing da nova tendência de consumo.


NOTAS


[1]. CASTELÃO, Talita. Padrões irreais. Revista Adventista, n. 1375, p. 40, 2021.


[2]. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


[3]. LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.


[4]. SAMPAIO, Rodrigo P. A. de; FERREIRA, Ricardo Franklin. Beleza, identidade e mercado. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 1, p. 120-140, 2009. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 24 de mar. 2022.


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