A Feia Erudição

Obra de Quint Buchholz.


A propósito das aparências de erudição, confirmei em Machado de Assis, certa vez: “Cada criatura humana traz duas almas consigo”[1]. Gostei da tese machadiana de que nós temos uma alma exterior e uma interior. De então para cá, sempre que possível penso o seguinte, e não sem uma certa inclinação filosófica nietzschiana: são filisteus da cultura os indivíduos que dizem debater questões ditas de alta transcendência sem a menor alteração do espírito.


E, de fato, não há conduta mais antiga, mais enganadora, do que o culto às aparências de erudição. É anterior a qualquer mediocridade intelectual, filisteísmo ou que outro nome tenha. Como a citação acima entrega, andei relendo O espelho, um dos melhores contos de Machado de Assis no qual encontramos a tese das duas almas. Publicado em 1882, em Papéis Avulsos, se não me engano. E lembrei dos jantares inteligentes[2]. Já não dou ouvidos ao estado de apequenamento da alma exterior que cede às bajulações, nem aos cargos, nem às aparências etc. etc. O que me importa é valorizar a substância individual e a essência imaterial (hábitos, costumes, valores, intenções etc).


Cada alma, diria Machado de Assis, valoriza as coisas de certa maneira, entrega-se de uma certa maneira. Repito: pela valorização, ou pela intenção, pode-se dizer de uma certa alma: “Este é alguém que olha de dentro para fora (alma interior), ou que olha de fora para dentro (alma exterior)”. E quanto mais exterior, a alma mais se parece com Jacobina. Ao passo que há, entre Jacobina e a conduta da cultura filistina, como que uma similaridade substancial. 


Dirá alguém que de 1882 para cá passou um longo século e quatro décadas. Ah, não duvidem da atemporalidade dos arquétipos clássicos. A atualidade do personagem de O espelho nada tem a ver com essa insignificante, escassa temporalidade. E ele provoca de um tal jeito, e encaixa-se na atualidade de tal jeito, que, por vezes, me pego com a seguinte suspeita: “Jacobina é o modelo ontológico de erudição da atualidade”.


E se me perguntarem o que havia na alma interior ou exterior de Jacobina, eu diria que ambas eram corrompidas por crenças filistinas. Recorram aos velhos arquétipos dos sábios e, mais antigos ainda, dos medievais, dos gregos. Vejam os mais belos arquétipos e mais amados modelos. Olhavam e questionavam com sabedoria, com intenções verdadeiras e comprometidos apenas com o amor à sabedoria. Aí está a chave de tudo: intenções verdadeiras e amor à sabedoria. E, de fato, só me admira a erudição que “consiste em alcançar a excelência humana, os valores morais e políticos, próprios do aperfeiçoamento humano”[3].


Não sei se me expresso de forma clara. E se estou sendo idealista, paciência. Mas, como ia dizendo: explicarei aqui a minha reflexão sobre a feia erudição. Falei do filisteísmo da cultura, que, sem dúvida, é muito, muitíssimo similar ao personagem Jacobina de Machado de Assis. O filisteísmo, repito, venera a forma gregária de Jacobina e seu anseio pelas bajulações externas, que, segundo João Silveira (2017, p. 135)[4], sacraliza o cotidiano e reivindica “sua aparição nos palcos”. Sente “um orgulho de si” e carrega “certa presunção a ponto de buscar a legitimação de seu modo de vida através” da aparência de erudição. Digo aparência de erudição, como poderia dizer bajulação de cargos e títulos. 


Basta a aparência de erudição. A coerência era certa, natural, consagrada, na erudição antiga. Mas, quando o intelectual se tornou um ser gregário, a legitimação da pequenez foi a sua primeira atitude, o seu primeiro conforto gregário (espíritos medianos). Mesmo os mais iletrados da Grécia antiga preservavam um mínimo de coerência (éthos). E eis que, de repente, em nossos tempos, há todo um filisteísmo generalizado. Aí está o Jacobina. 


Dirão que sou apenas um antiquado. A nossa vida social depende de uma meia dúzia de nobilíssimos fingimentos fixos. E, de fato, o sábio ou, nem tanto, o simples amante da sabedoria há de ser sempre um antiquado, devido a uma cultura que visa apenas os títulos institucionais e a aparência. E nos centros educacionais, o orgulho dos titulados nos atropela. 


Durante séculos e séculos, a erudição era atividade de potente significado. Era como uma condição necessária para o intelectual. Através das épocas, só por meio do sentido existencial profundo e da criação, ou da elevação, surgiam os gênios. Para a atualidade, a cultura é vazia, produto, vaidade. E, obviamente, passaram a surgir, aqui e ali, a cultura de produção, entretenimento e distração. Tal como os modelos de produção do Fordismo e Toyotismo. E começamos a época da erudição sem significado criativo, da cultura sem substância e, repito, sem a exigência de fecundidade. A cultura como intensificação da vida e de potente significado deixou de existir. Todos se especializam, para o trabalho e para o dinheiro, inclusive para as promessas do marketing.


Deixo de lado as questões utilitárias. O que me interessa é a feia erudição. Nunca o povo falou tanto de livros, do simbolismo do livro. Somos enganados pelos fake books. Esclareceu-me, ainda ontem, o crítico literário argentino Patricio Pron[5]: “Pela bagatela de 70 euros, é possível se vangloriar e exibir numerosos e respeitáveis livros — e sem a necessidade de comprá-los, de adquirir estantes e, é claro, de sequer lê-los”. O próprio Patricio Pron afirma, na matéria, o seguinte: “O resultado dessas estratégias, no entanto, vai por outro caminho: é simplesmente a promoção da compra de livros do ponto de vista de seu potencial decorativo, ou para conquistar o respeito e certo capital simbólico que aqueles que não têm o hábito de ler dão àqueles que têm (baseado na ideia fictícia de que os leitores são, de alguma forma, superiores) — ou, até mesmo, para celebrar a existência e os feitos de escritores do passado”. 


E a Maddy Burciaga, influencer francesa que ganhou as manchetes? Doce figura. Um dia aparece com as caixas que imitam livros. Quando ela influencia, ou quando ela bestifica a função do livro, dá a sensação de que é fake book de si, ou a fake de si mesma. Da mesma matéria em questão, fui ler a A história do meme que se tornou realidade ao virar o produto mais absurdo da Amazon[6]. Compra-se um papelão para ter uma falsa estante de livros, como a erudição da atualidade. Segundo o Jaime Lorite, o anúncio tinha como destaque a paródia de que era “perfeito para atores, jornalistas e comediantes”. 


NOTAS


[1]. ASSIS, Machado de. O espelho. Contos: uma antologia - Volume I. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, 2ª edição, pág. 401-410.


[2]. PONDÉ, L. Felipe. Jantares inteligentes. Folha de S. Paulo: Ilustrada, 06 de jun. 2011. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 03 de mai. 2022.


[3]. PAVIANI, Jayme. Platão & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 36.


[4]. SILVEIRA, J. Eduardo. Considerações acerca da cultura filistina: a seriedade da existência e a arte como distração e entretenimento. Pensando - Revista de Filosofia, v. 08, n. 16, 2017, p. 132. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 04 de mai. 2022.


[5]. PRON, Patricio. Livros para mostrar que ler não é necessário. El País, 28 de jul. 2021. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 13 de jun. 2022.


[6]. LORITE, Jaime. A história do meme que se tornou realidade ao virar o produto mais absurdo da Amazon. El País, 03 de mai. 2020. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 13 de jun. 2022.


Comentários

  1. Parabéns meu amigo, pela linda iniciativa de tornar a internet um espaço mais inteligente já li quase todos os textos, vc e sua esposa estão trabalhando lindamente.
    Abraços!!

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