Ressentimento, de Maria Rita Kehl


FICHA TÉCNICA

2020 / 207 pág / São Paulo

Autora: Maria Rita Kehl

Editora: Boitempo

Catalogação bibliográfica: Ressentimento, Nietzsche, Freud

ISBN: 978-85-7559-757-6


A obra Ressentimento é uma pesquisa sobre a lógica e a constelação do ressentimento. O ressentimento é um estado patológico, uma forma de doença que desloca o papel da memória e da consciência, fazendo da lembrança uma chaga quando a memória invade a consciência[1]. O papel da consciência não deve ser fixar-se nas excitações presentes de forma indelével, mas ser apenas receptiva às mesmas.


Nesta obra em questão, Maria Rita Kehl investiga o sujeito que não mais reage, mas apenas sente e de forma rancorosa, ressentida. Maria Rita Kehl nasceu em Campinas, São Paulo, em 1951. É Doutora em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em 2010 ganhou o prêmio de Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção com a obra O tempo e o cão: a atualidade das depressões (Boitempo). 


A psicanalista pontua que o tema investigado é pouco estudado e destaca que viu-se obrigada a contornar a falta de bibliografia específica sobre o assunto, ainda afirma que à exceção de Nietzsche, na filosofia, não houve nenhum outro autor de outras áreas que se dedicaram a esse problema. Assim sendo, a pesquisa em questão investiga o ressentimento ao fazer um trajeto da filosofia à psicanálise, além de examinar personagens de filmes e de obras literárias.


Já no início da obra a autora destaca o ressentimento como sintoma social, os ganhos subjetivos do ressentimento, o ressentimento em Nietzsche e Freud, e a atualidade do ressentimento. Mas vai além ao examinar as políticas do ressentimento, fazendo correlação entre ressentimento e injustiça, ressentimento e individualismo, ressentimento e memória, ressentimento no Brasil e ressentimento e cordialidade.  


Apesar do ressentimento não ser um conceito da psicanálise, aproxima-se da mesma pela natureza de sua constelação afetiva com suas “exigências e configurações imaginárias próprias do individualismo e os mecanismos de defesa do eu a serviço do narcisismo” (p. 09). A lógica do ressentimento é caracterizada pelo privilégio do indivíduo em detrimento do sujeito de modo a contribuir na sustentação da integridade narcísica do mesmo sem considerar o sucesso de seus empreendimentos. 


Desse modo, nota-se que o ressentido não é um sujeito de ação, isto é, ele “não se atreve, ou não se permite, responder à altura” (p. 10) do agravo recebido. O ressentimento é uma reação que não foi posta em ato, nem mesmo em ato de palavra capaz de aplacar a injúria ou agravo. A ação é uma resposta aos estímulos e os estímulos para o ressentido é sempre uma agressão ou um agravo que causa impotência.


Essa impotência o impede de se engajar em ações ou realizar qualquer atividade e, de acordo com Maria Kehl (p. 09), o ressentido atribui a responsabilidade de suas ações ao outro, mas quando as coisas não saem como o esperado, interpreta a falta como prejuízo e transfere a culpa para outrem de modo a atribuir ao outro a responsabilidade pelo que o faz sofrer.


Como fora dito, o ressentido é um indivíduo que para proteger o eu a serviço do narcisismo, culpa o outro quando depara-se com uma falta que é interpretada como prejuízo. Como a ação ou a vingança não ocorre e torna-se comum o fato de o tempo de vingança nunca chegar, então o ressentido fica “tão incapaz de vingar-se quanto foi impotente em reagir imediatamente aos agravos e às injustiças sofridos [...] é um vingativo que não se reconhece como tal” (p. 11), pois sua condição tem mais a ver com rendição voluntária e restrição própria do que com derrota ou repressão. 


O ressentido é alguém que não consegue esquecer, ou ainda, alguém que não quer e recusa-se a esquecer o agravo. “Um escravo de sua impossibilidade de esquecer. Vive em função de sua vingança adiada, de modo que em sua vida não é possível abrir lugar para o novo” [...] e “como se trata de um vingativo passivo, seu silêncio acusador e suas queixas contínuas mobilizam, no outro, confusos sentimentos de culpa” (p. 73).


Uma saída possível para o ressentimento seria a capacidade de perdoar, pois “o perdão propicia o esquecimento, mas só é possível se as razões do responsável pela ofensa forem compreendidas ou se o ofendido conseguir superar o agravo até que suas consequências se tornem insignificantes” (p. 17). Todavia, o ressentido é marcado pelo não esquecimento e apego imaginário à ideia de vingança que é sempre adiada, ruminada. 


A autora pontua também que o ressentimento não limita-se apenas aos indivíduos particulares, mas pode se manifestar como um fenômeno político formado por uma “constelação afetiva que serve aos conflitos característicos dos indivíduos e dos grupos sociais no contexto das democracias modernas” (p. 159). Esses conflitos característicos são causados pela “insatisfação dos grupos ou das classes para quem as promessas de igualdade de direitos entre todos os sujeitos nascidos na modernidade não se cumpriram como era esperado” (p. 162). 


Essa insatisfação gera o ressentimento social protagonizado por massas com atitudes de passividade queixosa e criadora de “sujeitos impotentes como agentes de transformação política que lhes interessa” (p. 162). Além disso, tal ressentimento social provém, muitas vezes, da insatisfação desses grupos sociais quando não se reconhecem em suas condições de classe, pois identificam-se com outros padrões e ideais que julgam acessíveis, mas que em reais condições revelam ser inacessíveis aos mesmos.


O ressentimento no Brasil, segundo a autora, acontece de forma cordial, visto que os brasileiros em geral não consideram o próprio ressentimento e preservam a cordialidade, por isso, os brasileiros agem com “pressa em perdoar os inimigos, com medo de parecer ressentidos”, mas destaca que o ressentimento “se esconde justamente nas formações do esquecimento apressado, tão característico da sociedade brasileira” (p. 187).  


A cordialidade brasileira nega o ressentimento contra a obscuridade da impessoalidade da lei, dos agravos sob a lógica do favoritismo e das preferências afetivas. É uma cordialidade ressentida que não esquece o agravo causado pelo cumprimento da lei “mascarado sob a aparência de um favor especial”, uma vez que “o homem cordial prefere gozar dos benefícios secundários de sua posição de explorado, mas explorado com jeitinho, a arriscar a perda destes falsos ‘privilégios’ por descontentar um patrão ou uma autoridade paternalista” (p. 191).


NOTAS


[1]. AZEREDO, V. D. Ressentimento. In: Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 364.


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