FICHA TÉCNICA
1962 / 112 min. / Drama
Direção: Yasujiro Ozu
Elenco: Chishû Ryû, Eijirô Tono, Keiji Sada, etc.
Nacionalidade: Japão
O filme A Rotina Tem Seu Encanto (1962), de Yasujiro Ozu, reforça a crença de ser a rotina uma forma de beleza superior. De fato ela oscila, cotidianamente, entre a superficialidade, que deseja espetáculos vulgares, e a profundidade real do menor fato cotidiano, capaz de aceitar que a mesmice de todos os dias retoma, invariavelmente, a cada dia, a sua cotidianidade.
A distração prende-a ao que poderia ser; o encanto, ao que é.
Como desejar o que ainda não é equivale a viver ao abandono de sua presença própria, e como o que há de culto exacerbado, vazio, na promiscuidade, com suas aparências, motivando o lado da grosseria afetiva, que a si própria se destrói, pois o invisível encanto das coisas e dos fatos banais, concretos e abstratos, tecem, no tecido da realidade, a beleza que nos bastará para sempre.
Somos o que os hábitos nos fizeram!
O que somos de espiritualidade e superficialidade, de razão e vontade, de ação e pensamento, de lazer e trabalho, de sensibilidade e frieza, de vícios e virtudes, o que somos de descrença e esperança é fruto de rotinas, é fruto de práticas repetidas, é fruto de atenção, é fruto de correções e práticas morais.
Eis nossas possibilidades!
Para entendermos a nós próprios é preciso entender nossa rotina. E as escolhas diárias; e assim por diante, continuando essa reflexão, pois é sem racionalidade a dispersa interpretação da realidade, esse fracasso do cotidiano, cujo o perigo inclui o nosso próprio abandono e é alfa e ômega de todas as nossas infelicidades, roubando a virtude candente a tudo o que fazemos e a beleza de todo o nosso esforço.
Consultemos, pois, os velhos livros, vejamos os filmes do antanho que chegaram até nós, procuremos em obras o que pode haver de nós nos que vieram antes, e, assim, começaremos a compreender o que negligenciamos valorizar: que queremos, o que nos é possível amar, que valores e que encantos poderemos acrescentar ao firmamento herdado.
Em nosso caso de povo brasileiro e no que tange à rotina da nossa predileção, a busca obriga-nos ao saber do passado.
Saber dos antigos, riqueza de todos, em que os saberes do homem (Yasujiro Ozu) tornam-se os saberes de muitos homens (cultura, cinema, etc.), os valores de uma civilização e em que uma narrativa fílmica de encantadoras rotinas passou a ser ignorada pela desatenção dessa geração. Quando o Ozu nasceu, os céus presentearam-nos com o encanto da sua narrativa realista. A obra de Ozu é a alma da família japonesa. Aquele que, em japonês, contempla a densa cotidianidade de gregos e troianos[1], diz um outro sábio antigo, “o que buscamos na arte, como no pensamento, é a verdade”[2].
Ozu comparou a atividade da alma japonesa a um rito sagrado, em torno de que se reúnem e se encontram todos os encantos do mundo. Mas, desse rito sagrado, nas famílias do Japão e à disposição de gregos e troianos, nasce o bem e o bom, a beleza, a contemplação cotidiana, o encanto das banalidades, a profundidade do momento presente, todas essas verdades que ainda são a nossa felicidade e realização, e o Belo.
É a rotina a origem do encanto. O Ozu e o Japão, no período mais tradicional daquele distante passado, falam-nos o sine qua non[3].
NOTAS
[1]. Gregos e troianos é uma expressão sobre indivíduos pertencentes a diferentes grupos, partidos, ou que têm ideias e opiniões divergentes, isto é, é difícil de conciliar gregos e troianos.
[2]. Georg Wilhelm Friedrich Hegel foi um filósofo germânico. Sua obra é tida como um marco na filosofia mundial e na filosofia alemã.
[3]. Sine qua non ou conditio sine qua non é uma expressão que se originou do latim que pode ser traduzido como “sem a/o qual não pode ser”. Refere-se a uma ação cuja condição ou ingrediente é indispensável e essencial.
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